sábado, 12 de setembro de 2009

Queridos João e Kátia

Farei das palavras o nosso reencontro. Quero que possam compartilhar de tudo o que temos vivido de forma tão intensa que por um instante duvidem de sua própria sanidade sobre quanto tempo estivemos distantes. Não porque tenham nos pedido. É que nos poucos segundos que me tomaram a sua mensagem, foi exatamente assim que me senti. Como se o tempo evaporasse, minhas memórias ficaram tão vívidas que tive até a impressão de poder tocá-los.
O mais impressionante de nossa amizade é que embora não lhes pareça – o que faço questão de provar o contrário – nunca pereceu com o tempo. Tivemos com vocês um relacionamento tão fraterno, amigo, verdadeiro que me parece mais do que amizade, foi um presente. Guardado está em nossos corações como o amor de mãe, consolidado e fortalecido pelo tempo. Em nossos dias corridos e muitas vezes corrompidos pela rotina muito aquém dos sonhos construídos em minha juventude, vocês estão ali, como um capítulo de um grande romance no qual reviramos páginas por páginas na pressa de chegar logo ao reencontro.
Faltam palavras que possam atribuir sentido às recordações que tenho quando volto no tempo. Saudades... é muito pouco para o muito que vivemos. Em inglês talvez fosse mais fácil. I miss you. We miss you. E como. É verdadeiro, sincero, honesto. É viver a nostalgia do cinema.
O corre corre diário é o melhor remédio para as dores da saudade, mas traz o efeito colateral do mal entendido, a impressão de que não se estima aquilo que se estima mais. Não é verdade João. Não é verdade Kátia. A vida transpassa em um ritmo tão frenético que as vezes da mesmo vontade de pedir para parar. Descer na primeira estação. Na estação do tempo onde tudo permanece exatamente como fora um dia. Eu não hesitaria em parar se assim pudesse ser. Ficaria ali estacionada naquilo que me trouxe um dia só alegrias. Não há nada em nossa amizade que teria me feito querer partir.
A vida... Como tem sido a nossa vida? Depois de tanto tempo sem lhes dar notícia fica a dúvida de por onde começar. Entretanto estou determinada a ir até o fim, e fazendo das suas as minhas palavras: “Normalmente concluo os meus projetos”. A partir de agora a meta não é ser sucinta, breve. Não pouparei palavras para lhes interar de tudo, poderá daqui em diante contar seus causos completos e com continuidade!
O casamento prossegue, um dia ou outro difícil, evidentemente. Uns dias e outros maravilhosos como devem ser. Em poucos meses serão 08 anos de casado, uma ótima notícia: a crise dos 07 anos parece estar ficando para trás! Hehehe O filho completará 15 anos em dezembro, e dentre muitas dificuldades e erros, alguns acertos podem ser contados! Marcelo está gigante, tão grande que me faz pensar se não deveria te-lo inscrito em um time de basquete. Ele se recusaria sem dúvidas, tem pavor de crescer, se pudesse seria eternamente pequeno – creio eu que tem medo de não se assemelhar com seus pais tão pequeninos! Estuda em uma boa escola. Na verdade está matriculado em uma boa escola, porque estudar não lhe apetece muito, o que sem dúvidas já era de se esperar dado a sua falta de base. Disciplina também não parece ser o seu forte, natural dos adolescentes. Por vezes não sabemos como agir, mas sejamos francos: quantas foram as vezes que meus pais não souberam como agir comigo. Ser pai não é fácil. Não ter desafios na vida me parece pior.
O trabalho merece um capítulo aparte: A Toca do Gambá cresceu e me orgulha profundamente. Nossa força está nas festas infantis, hoje administro um Buffet completo, com decoração, recreação, salgadinhos e tudo o que uma boa festa requer. As dificuldades são muitas, trabalho absolutamente todos os finais de semana, feriados, e dias da semana também. As folgas são quase nulas, todavia posso ver e contabilizar os resultados. Não João, não estou rica! Seria tão bom se estivesse... ehehe.. Mas tenho colocado as contas em dia. Hoje temos uma marca consolidada em nossa cidade, estamos decididamente entre as melhores empresas no ramo. Temos prestígio, clientes fiéis e muito trabalho a fazer. Várias pequenas reformas foram feitas na área destinada a Toca, uma bela cobertura para a área externa – poupando o jardim que merece todo o meu respeito, brinquedos foram colocados, uma brinquedoteca construída em cada detalhe. Nossas colônias de férias antes novidade já viraram tradição. Janeiro e julho as crianças enchem o ambiente com sua alegria e disposição. Há dias destinados a dormirem em nosso espaço: O tradicional Nana Gambá, que de nana não tem nada, porque colocar crianças para dormir é um desafio nunca ultrapassado!
Os computadores tomaram conta da vida do Martinho definitivamente. Tem muitos clientes, não menos que 400. Todos com um bom conceito, e até que eu saiba muito satisfeitos. Aquele pequeno conhecimento que ele tinha é insignificante perto do que tem hoje, dado a sua longa experiência na área. Sabe muito Kátia, muito mesmo. Tem já 03 funcionários para dar conta do trabalho, e hoje pode se dizer que é um especialista em redes, segurança e implementação de servidor. Palavras pouco explicativas para mim que sou leiga! Em síntese: trabalha para grandes empresas e dá conta do serviço. Por vezes acho até que o velho Martinho se aperfeiçoou tanto na área que se assemelha um pouco com seu objeto de trabalho. Trata de nosso relacionamento como lida com seus fiéis objetos de estudo: os computadores. Desenvolveu uma linguagem tão lógica e concreta que me tira do sério as vezes. Uma cervejinha no final do dia o devolve a realidade.
Cervejinha, vodka... Fazem parte de nosso cotidiano, de forma saudável, posso garantir. Uma baladinha aqui, outra ali. London (acreditem, ele ainda existe), Lounge (uma boa danceteria de frente a Praça do Rosário – próximo a bicota), barzinhos, tudo isso parece nos entreter um dia ou outro. Nessas horas esqueço-me dos 31 anos completos que tenho e me sinto como nos velhos tempos, em plena juventude. Dançamos e farreamos a noite toda. É verdade que chego em casa mais derrubada e destruída pela ressaca do que outrora. O espírito permanece jovem, garanto.
A propósito do “espírito”, devo confessar que é desprovido da idéia religiosa. Sou hoje completamente cética, atéia no literal da palavra. Não creio em deuses, anjos ou demônios, e quanto mais leio (o que faço consideravelmente) mais certa estou de minhas convicções, ou falta de convicções. Tenho ótimas referências de leitura na área João, e teria muito prazer em lhe enviar um exemplar de: Deus, um delírio. Richard Dawkins (o autor) deve ter me conhecido em algum lugar que hoje não posso lembrar, porque comunga de minhas mesmas idéias! Rsrs Não me interpretem de forma errônea, não me tornei uma pessoa má, amarga ou perversa por não crer na existência de um ser superior mal humorado e ranzinza. Só não tenho compactuado com a ignorância que as religiões professam. Estou muito bem assim, e mais caridosa do que nunca, porque o meu amor pela humanidade prossegue infinito.
Faculdades... Dariam um bom texto, tantas foram as que cursei. Acreditem, ainda não formei em nenhuma! Uahauhauhauah Voltando de Londres resolvi pela pedagogia (refrescando a memória, antes foram: administração, jornalismo e direito). Tive muito prazer em aprender sobre o aprender. Se é que isso faz sentido! Adorei estudar os processos de aprendizagem, as técnicas, as idéias, os grandes filósofos da educação. Por um tempo até achei que era amante de Rousseau, podia senti-lo, tinha o prazer de sua companhia ao ler seus deslumbrantes textos na madrugada. Acabou não dando certo, o relacionamento se rompeu pela falta de tempo. Uma pena. Hehehe. Mas tudo bem, vieram outros, e embora a pedagogia se foi (cansei, já compreendi que as faculdades só me entretêm no comecinho, enquanto estou no tesão, na paixão, depois perdem a graça, perco a vontade). Agora tenho pensado com muito carinho na filosofia. Será?! Certamente no meu caso as faculdades são puro hobby. Adoro ler, estudar, aprender e escrever (acho que já podem perceber!).
Leituras têm tomado mais horas dos meus dias do que eu poderia supor. Madame Bovary de Gustave Flaubert fora o último livro lido. Um deleite! O tédio que a personagem vive fez muito sentido pra mim, porque embora possa me considerar feliz não deixo de questionar a monotonia da rotina. Esta não passa despercebida.
Não tenho projetos milionários, esses deixei para o Martinho, que não se dará por satisfeito antes do primeiro milhão. Um milho cozido já me deixa bem satisfeita. Melhor ainda se puder comê-lo nas muitas viagens que planejo. Reservado para esse fim será todo o meu dinheiro. Assim que puder contabilizar uma folguinha financeira quero viajar pelo mundo, e vejam só, a primeira meta, que com toda a certeza será o ano que vem: New York! Antes do fim do ano poderão reservar o meu travesseiro, porque nada me demoverá da idéia de pisar os meus pés onde pisam os seus.
Os cães são as mais formidáveis companhias! Temos quatro, absolutamente fofos: Sofia, uma labradora clarinha em processo de emagrecimento. A obesidade anda lhe causando problemas graves de saúde, o peso do próprio corpo tem sido um fardo a carregar! Pesa 40 quilos, quando muito deveria pesar 25. Gorducha, desengonçada, fantástica! Rodeada de 03 yorkshires pequeninos e leves como a minha consciência, Sofia é a releitura do Patinho feio. Assim ela se sente. Quer pular no sofá como os miniaturas, por pouco não nos quebra a cama quando saltitante se joga sobre ela na tentativa de se assemelhar com seus irmãos peludinhos e pretinhos. Tem uma carinha tão dócil e carente que impossibilita-nos de lhe fazer recusas. Ainda assim tenho certeza que ela se sente como um patinho feio, tão atrapalhada e diferente dos outros. Gostaríamos que soubesse o cisne que é. Caju é a caçula da família, magrela, dada a latidos estridentes. Nas noites de sono gosta de dormir com a cabecinha no meu peito, assim sendo até esqueço-me dos latidos. Duda é gorduchinha e dengosa, requer todo um carinho e cuidado especial, é a mais dependente de todas. Ama-nos com uma intensidade formidável. Se pudesse viveria no meu colo como um filhote de canguru. Engraçado é que não me canso. Se pudesse eu queria ser o canguru. Também dorme na cama, mas tem mais gosto pelos meus pés. Rouba vez ou outra o travesseiro do Martinho quando ele resolve usar o banheiro a noite. Ele volta e se aconchega em qualquer cantinho, falta-lhe coragem de tirá-la do seu conforto. É um pai apaixonado! O Scooby é o único macho da família, fortinho, um pouquinho mais covarde do que poderíamos esperar de verdadeiro macho, mas nem por isso menos amado. Não é um cão muito certo da cabeça, disso não temos dúvidas. Alguns neurônios a menos, não sei. Faz xixi na sua própria comida. Nos computadores dos clientes do Martinho também... Isso tem rendido bons capítulos! Eheheh ... Mas tem o nosso perdão. Amamos loucamente nossos cães. Quando vamos a praia (todo final de ano), vamos com todos. Alguns membros de minha família de nascença não ficam muito satisfeitos, mas nós com certeza ficamos!
Enquanto aqui escrevo, o Martinho me apressa! Quer logo me ver postar essa mensagem, anseia por mais notícias, relembra os velhos tempos e tem tantas saudades quanto acredito que todos nós temos. Disse agora que passa com muita constância de frente a sua casa João, e sente um profundo pesar por estarem tão distantes.
Atendendo ao pedido de meu marido, fruto do relacionamento por vocês testemunhado, nas mãos as alianças presenteadas por nossos melhores amigos, encerrarei aqui esta carta, que levaria 15 dias para chegar a suas mãos se não fosse pela tecnologia que nos provê o arroz e o feijão – já que as compras de comida são responsabilidade do meu técnico pessoal de informática! Posto aqui em meu blog, local de todos os meus devaneios, o meu testemunho, quase um testamento, dedicado a dois amigos pelos quais tenho o amor maior do mundo! A você João, e a você Kátia dedico toda a minha felicidade.

Dos amigos ausentes, com a saudade presente, e pela amizade eterna.

Drica e Martinho

*Sentimos profundamente pelo seu avô. Lembramos de seus causos e fizemos por ele o nosso minuto de silêncio.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Você tem medo de morrer?

Pergunta feita em uma comunidade do orkut "Sou feliz por ser ateu!"

Não tenho medo de morrer, só tenho medo de não viver o suficiente.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Adoção por homossexuais.

Será mais importante evitar que uma criança possa vir a sofrer preconceitos ou lhe garantir uma família que a ame e esteja disposta a olhar por ela?

Eu e meu marido adotamos um menino de 10 anos, que fará 15 agora em Dezembro. Olhando pra ele, posso ver o quanto nós fomos e somos importantes na sua vida. Não somos exemplos de pais. Aliás, damos péssimos exemplos as vezes. Tenho 31 anos, meu marido 26 e embora casados a 07 anos, levamos uma vida de jovens. Nossa casa muitas vezes é uma bagunça, cheia de gente, bebidas alcólicas por todos os lados, e tantas outras coisas que não seriam aceitas pelas convenções sociais. Mas o que vejo??

Vejo um menino que morava em um lar/orfanato, sem alguém que lhe desse um beijo de boa noite. Um menino que ficou 02 dias de castigo porque comeu 01 bolinho de arroz a mais do que lhe era permitido. Um menino que até hoje me pergunta coisas ridiculamente simples como: "o que é palmito?". Meu filho (Marcelo - era Marcelu, mas tivemos a oportunidade de corrigir quando o adotamos) adora ir ao supermercado, pelo simples prazer de ver as coisas na prateleira e se deslumbrar com tudo que nunca tinha visto. Tem um prazer que chega a ser engraçado em ver a família reunida em ocasiões de aniversários, formaturas ou coisas do tipo. Adora falar palavras como: vó, tia, tio. Quando encontra-se com a minha mãe, a chama tantas vezes de vó que chega a ser cansativo.

O que vejo hoje é um menino feliz. Não porque tem um pai homem e uma mãe mulher, mas porque tem quem olhe por ele.

Devaneios...

Entre a bíblia e corão, fico com a Turma da Mônica.

Das dúvidas nascem as certezas: a certeza de que mais dúvidas estão por vir.

O senso comum de tão comum, acaba sendo falta de bom senso.

Não estou apta a escrever hoje.... a tela branca permanece branca. Ainda não me dei por vencida.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Felicidade a qualquer custo.

Um acontecimento crucial abalou a cidade de Longesville. A Bruxa Berenice em meio a sua angústia de praxe havia conseguido realizar a poção que levara anos tentando produzir. Era ela uma mulher infeliz. Frustrada e entediada pelos os dias monótonos que passava dentro de seu laboratório inspirado em modelos de filmes de terror holiwoodiano. Sua desgastante busca chegara ao fim. Finalmente. A poção da felicidade estava pronta. Faltava somente colocá-la em uso.
Logo nas primeiras horas da manhã de dezembro, Berenice soprou aquele pequeno pó fino como o pó de vidro pela janela de sua masmorra. O vento se encaminharia de espalhá-lo pela cidade cinzenta.
Não demorou muito para que a cidade fosse contaminada pela magia da velha bruxa. Em poucos instantes todas as crianças sorriam escandalosamente. Os adultos que por acaso se encontravam, sem nunca terem se visto antes, de imediato passaram a cumprimentar-se efusivamente. Parecia um festival de sorrisos e gargalhadas. Em cada esquina as pessoas se aglomeravam para pequenos bate papos, falavam exclusivamente de coisas boas. Ninguém ousava comentar do estado moribundo de seus parentes reclusos nos hospitais públicos. Já não se falava de demissões, boletins vermelhos, rompimento de relacionamentos. Nada. Até as dores de dente pareciam camufladas naquele momento.
Os dias corriam rápidos, rápidos e felizes. Mães em harmonias com seus filhos. Maridos divorciados abraçavam os novos pretendentes de suas esposas. Uma felicidade contagiante, embora um pouco mais próxima a mania, que muitas vezes antecede a depressão. Até os jornais, antes tão acostumados a divulgar as piores notícias, pareciam deixá-las de escanteio. As notícias eram sempre as melhores, o farmacêutico cheio de dívidas que ganhara na loteria, a empregada doméstica acometida por um câncer que recebera uma cura extraordinária, a nova lei que beneficiaria a todos e fora finalmente aprovada. Longesville havia se tornado a cidade imaginária da felicidade.
A bruxa Berenice não se cabia de satisfação. Em anos de profissão finalmente fizera algo de útil. Olhava-se diante do espelho e notava uma ou outra verruga a mais. Agora isso não tinha a menor importância. Ninguém notaria seus cabelos brancos, sua pele envelhecida pelos anos de labuta. Todos estavam com os olhares voltados para o que há de bom. Diziam mesmo que até as mulheres cujas celulites eram maiores que as bundas desfilavam de fio dental nas praias da cidade. Tudo agora era permitido, as pessoas viviam em êxtase.
Os hospitais públicos, é verdade, não comportavam mais doentes, a gripe americana havia chegado à cidade meses antes, dizimara pequenas vilas mundo afora, e não parecia diferente em Longesville. Faltavam leitos, faltavam medicamentos, máscaras de proteção e luvas de silicone, mas ninguém parecia se importar. Dizem que até os doentes faziam graça de sua desgraça. Muitos morriam: _ Pura fatalidade! Diziam outros.
A prefeitura custava a dar conta dos gastos extraordinários do prefeito. Eram churrascos de boas vindas aos políticos de outras cidades, cargos criados para atender a todos que estivessem desempregados, bolsa família, bolsa escola, bolsa churrasco de final de semana. O prefeito estava feliz, não poderia agir de forma diferente. O que é a política se não a busca para o bem comum? Certamente todos os gastos assim se justificavam.
Nas escolas a cena era a mesma: professores compartilhavam de suas alegrias com seus alunos. Compartilhavam também alguns pontinhos na prova, isso é verdade. Afinal os tempos eram esses. Tempo de ser feliz! Exatamente essas eram as palavras que compunham a faixa que fora colocada na praça dos cisnes brancos (antigamente chamada de praça dos patinhos). Ninguém era mais reprovado em escola nenhuma, resolvera um belo dia o diretor tomado pela alegria.
Templos, igrejas, ironicamente já não estavam tão cheios. Os assentos da igreja Central brilhavam de longe, tantas vezes foram encerados para receber o rebanho, que parecia de férias. Alguns poucos apareciam nas missas de domingo, a fim de agradecer ao criador por tantas bênçãos. Todavia, o rebanho clássico, desaparecera de vez. O glorioso dono de tudo já havia atendido todas as suas preces, poucas seriam as razões para continuar orando. Davam-se por satisfeitos com os serviços prestados outrora.
Bons tempos aqueles. Quisera uns que fosse para sempre. Mas para sempre é mesmo um termo específico de contos de fadas. Este não é um conto de fadas.
Em Outubro do ano seguinte, próximo ao dia 14 do mês de libra, as coisas pareciam começar a mudar. A felicidade não, até porque magia de bruxa só se tira com antídoto.
Longesville é que estava mudando. As contas públicas haviam escandalosamente quebrado a prefeitura. Hospitais precisaram ser fechados, até mesmo uma gripinha trivial estava matando uns e outros, por falta de leitos e medicamentos. As crianças, muitas delas, já não freqüentavam mais as escolas. Os objetivos para tanto não lhes faziam mais nenhum sentido. A finalidade da vida não era ser feliz? Já o eram, e isso era o bastante.
Os padres, bispos e toda sorte desse tipo de gente beiravam o desespero. O mais interessante é que sorriam diante a própria desgraça. Parecia um sorriso falso, efêmero. Como o choro de quem faz parte de um velório e nem conhecia o defunto. A impressão é um engano, porque de fato estavam mesmo felizes, aparte de sua realidade deprimente. Sem o dízimo os templos começaram a ruir. A energia da igreja já estava cortada há meses, a empresa estatal fornecedora de luz não perdoava ninguém. O padre confessava de canto de boca estar um pouco cansado dos banhos gelados, como as águas da cachoeira da cidade vizinha. Acabaria por se acostumar.
A cidade vizinha era Munchester. Vizinha por ser a única mais próxima, mas não era assim tão próxima. Uns bons quilômetros a distanciavam de Longesville, quilômetros suficientes para manterem-se sempre apáticas, distanciadas mesmo.
Entretanto a distancia não foi o suficiente para deixar Conde Eustasen a parte das informações que corriam pelo mundo afora. Longesville havia se tornada famosa por seus cidadãos sorridentes e desgraçados, por mais incompatíveis que pareçam estas palavras. Eustasen era o prefeito de Munchester, um homem ranzinza, antipático até. Já não estimava muito o prefeito de Longesville, tiveram uma rivalidade na infância por causa de algumas figurinhas no jogo do bafo. Existem ressentimentos que são eternos, e o conde era bom em mante-los assim.
Aproveitando-se da condição atípica da cidade Eustasen não perdeu tempo. Era indubitavelmente a melhor chance que tinha de tomar para si a cidade ao lado, tal qual Hector havia lhe tomado as cartas no bafinho. Organizou as pressas e silenciosamente o seu bravo exército. Três dúzias de homens, dentre os quais alguns mendigos, operários a meses desempregados, jovens miseráveis cuja única possibilidade de sustento seria a guarda armada, um antigo barbeiro cujo salão fora tomado pelas dívidas. Nada diferente dos exércitos das grandes cidades. Talvez um pouco menos numeroso.
Esbravejava logo na primeira reunião:
_ É preciso ter coragem! Chegou a nossa hora! Longesville será nossa!
Fora logo amplamente aplaudido pelas seis dúzias de mãos. Os pracinhas já contabilizavam os seus ganhos, os saques que fariam, as jóias com as quais presenteariam suas esposas, o velho barbeiro já tinha em mente tudo o que precisaria para seu novo salão.
Em poucos dias o plano já estava pronto. Longesville continuava a sorrir, sem conhecimento da tragédia que estava por acontecer.
A batalha começou às vinte horas do dia vinte e quatro de dezembro. Muito bem escolhida a data, dissera Munchester a seu primeiro secretário Euroclos. A sugestão foi logo acatada, porque sem dúvidas os tolos sorridentes mais ainda sorririam na noite do bom velhinho. Nem se pode dizer que foi uma batalha. Duelo, batalha, são palavras que implicam outro, um conflito, uma guerra no mínimo. Não foi isso que encontraram em Longesville. A golpes de facas, tiros de espingarda, rajadas de canhão a população da pequena cidade imaginária respondia com sorrisos. Pernas foram decepadas, braços desfeitos em vários pequenos ossos não identificáveis, rostos desfigurados. Mas os sorrisos, estes permaneciam nos lábios dos dizimados. A cidade toda fora destruída em dois dias de batalha sangrenta. Os poucos idiotas que sobraram vivos foram logo direcionados aos campos de trabalho forçado de Munchester. Conde Eustasen sentira-se finalmente vingado. Até mesmo a figurinha do Zico que lhe fora tomada por seu inimigo estava recuperada pelo fiel Euroclos.
A bruxa Berenice não continha o seu sorriso, ali, distante, assistindo tudo o que planejara de sua pequena janela na masmorra. Não podia haver ninguém mais astuta do que ela. Sempre soube que pra tudo tem limites, inclusive para a felicidade. Na estante de madeira de lei que ficava a esquerda de sua escrivaninha fora guardada a sua fórmula de maior sucesso. Em letras garrafais, um pouco desajeitadas, dado a escassa habilidade de escrever da bruxa, podia se ler: Prozac.

A má fé...

Petrônio Macedo, 35 anos, casado, demente, quero dizer: temente, a deus. Cobiçava a mulher do próximo, perdoava-se por não ser tão próximo. Católico de nascença, evangélico em sua essência. Espancava esporadicamente seus três filhos, já lhe dizia a mãe: Se não vai pelo amor, vai pela dor. O mais longe que fora na literatura consistia em algumas páginas da escritura. Miserável nas condições financeiras, a vida se resumia em suas barracas nas feiras. Jamais lhe faltaria o dízimo, dava-se por satisfeito.
Segunda a sábado se resumia a frutas: Maça, pêra, romã. Uva, jabuticaba, goiaba. Laranja, morango e banana, assim finalizava a semana. Domingo era um homem devotado. Á bíblia, a deus, ao pastor e ao estado.
Orava por todos que amava inclusive a quem odiava. Fazia-o pelo grande temor. Medo do deus do amor. O pastor não poupava as palavras: “Jesus ou a dor!”.
Seu barraco, um tanto capenga, a cama era a rede debaixo da tenda. Madalena Batista uma bela esposa, conhecera-a no tempo da lousa. Bons tempos aqueles. Não passara da quarta série, a gravidez da namorada, a ignorância constatada, o estudo não serviria pra nada.
Nunca se arrependeu, era macho de mais para arrependimentos, as chances que perdeu era no mínimo desejo de deus.
É extraordinário o que lhe aconteceu: No domingo do culto a seu deus, uma revelação se sucedeu: Ao acordar as sete da matina, Madalena Batista já havia dobrado a esquina. Estranhou e até quis insultá-la. Impossível por tanto amá-la. Preferiu acreditar na vizinha: “Foi buscar uma remédio pra enxaqueca, coitadinha”. Esperou por três dias e meio, vasculhou o bairro, os parques, as escolas, até os bueiros.
O pastor resolveu logo a questão: Madalena havia subido aos céus. Petrônio Macedo, coitado, teria acreditado até se dissessem que foi virar ajudante de Noel.
Virou logo uma celebridade, marido da mulher mais santa da cidade. Alguns chegavam a dizer que era virgem. Petrônio Macedo, cabra macho que era não gostou da citação, mas dizia-lhe o pastor: “É para o bem do povão”.
O tempo passou, um templo montou. A população da pequena cidade de Assunção se esforçava para caber na lotação, quem em letras garrafais dizia: Igreja de todos os dias.
Das frutas Petrônio abriu mão, já estava garantido o seu pão. Seus filhos agora estudavam, faziam inglês, computação e redação. O mais velho responsável pelo evangelho, o mais moço só servia para lhe causar desgosto.
Petrônio Macedo ficara até mais bonito, dentes mais brancos, ternos mais nobres, Madalena nem acreditaria se tivesse o visto.
Acontece que nem tudo é perfeito, nem mesmo tendo se tornado o melhor amigo do prefeito! No dia mais cinzento do ano, aconteceu um milagre: sua mulher aparecera no templo, mãos dadas com seu velho amigo Bento. Petrônio quase não pode acreditar, de tão trêmulo caiu do altar.
Lembrou-se das palavras do pastor: Sua mulher teria sido levada pelo Senhor. O rebanho logo a notou. Por um segundo o local ficou todo agitado, o povo reclamava por todos os lados, queriam uma explicação, um sentido. Petrônio, já então um bandido, gritou comovido: Bento meu grande amigo, então és tu o deus prometido?

sábado, 5 de setembro de 2009

Madames Bovary´s

Certamente há mais madames Bovary´s do que poderia supor Flaubert. Entediadas com o decorrer da vida simples. Frustradas diante a concretização de seus sonhos mais primitivos. Encarceradas por suas próprias decisões. Decepcionadas pela improbabilidade de realizarem seus desejos mais íntimos e peculiares. Oprimidas pela moralidade das convenções. Há madames Bovary´s por todas as esquinas, enclausuradas nas mais formidáveis mansões. Há madames Bovary´s nos barracos decadentes dos cortiços. Elas parecem povoar todos os espaços que conheço. Por vezes me pergunto se há “Carlos” na mesma proporção que há madames B. Na novela da rede globo – Caminho das Índias – me parece haver um. O guarda fútil que se apresenta como segurança de faixa de pedestre. Carlos teria perdoado madame Bovary? Quem sabe Glória Perez nos permita uma reflexão. O que nos diria Flaubert?